A pior aluna da sala
Todo mundo sofre, em algum momento, da vaidade de querer ser o melhor naquilo que faz. Apesar de minha disposição a entender que algumas coisas não são similares a uma corrida (e se não o são, ser ou não o primeiro a chegar é indiferente), por vezes também sou acometida de um desejo discreto de brilhantismo. E não o deixo de realizar: há coisas em que realmente sou muito boa (e a falsa modéstia é um truque que a gente aprende com as pequenas noções de elegância que aprendemos na convivência cotidiana).
Eu faço uma aula de ballet em que, visivelmente, todas as estudantes da sala estão em graus mais avançados na prática que eu. Na verdade, o nível da aula exige, consideravelmente, uma habilidade maior do que a que eu tenho nesse momento. Mesmo assim, comprei a sapatilha de pontas (depois de muitos anos sem usá-la), passei a acordar cedo aos sábados e encarar a sala de aula acinzentada e rosa de minha professora. Passei a, inclusive, usar a meia rosa e sainha, coisa que evitei desde que voltei a tornar o ballet uma prática regular de meu cotidiano. Esse gesto me tornou, oficialmente, a pior bailarina daquela sala de aula. Quando não me montava de bailarina, ia às aulas um pouco mais outsider, me sentia levemente protegida pelo pensamento de que, no fim, “eu não estava lá para ser bailarina clássica”. Até que tive que encarar essa premissa e assumir para mim mesma que eu estava lá para isso sim. Eu já sonhei, um dia, em ser a primeira bailarina do Bolshoi (pense, eu não sabia o que era Rússia, mas sabia o que era Bolshoi), mas fui deixando tudo isso para trás porque, definitivamente, das coisas que sou ótima, ballet não é uma delas. Me faltam a graça e a leveza de um corpo que sabe se controlar; me faltam joelhos que não sejam medrosos, me falta a coragem do olhar para o horizonte e o equilíbrio de quem é capaz de apoiar-se em si mesmo para se manter erguido. Não preciso dizer que o ballet clássico é uma seita muito esquisita, a qual ensina a um corpo tudo o que é contra sua natureza – coisas como a beleza da dor, esforços invisíveis e, em uma sociedade espetacularizada, a arte do mínimo.
No meu caso, o ballet me ensina a arte da falha. Erro com gosto, todos os sábados, as sequências, os posicionamentos corretos do corpo, as piruetas. Nas diagonais, sou sempre a última; nos exercícios de centro, fico no fundo. Nem sempre consigo terminar as baterias e meu coque sempre desmancha. Ninguém deve esperar grandes coisas de mim, eu não esperaria se me visse. No entanto, há uma mão que, de vez em quando toca meus ombros e me assopra uma instrução: é minha professora me corrigindo, vindo lá do outro extremo da sala. Abruptamente, sou atravessada por essa comoção de ser vista. Os piores também estão presentes, e tentando, penso dentro de mim. Estamos tentando. Tentando não, como já disse muitas vezes essa professora: fazendo.
Ser a pior aluna da sala tem sido uma lição fundamental para mim. Isso alimenta uma espécie de empatia na gente, nos fazendo lembrar que alguns processos são mesmo difíceis, e exigem calma, concentração e um recurso precioso que é a capacidade de frustrar-se e ainda assim insistir. Esse não é o tipo de coisa que a gente aprende quando a gente é muito bacana. Na verdade, quando a gente é muito bacana, ou se acha muito bacana, o que a gente aprende é se sentir injustiçado. Ser a pior aluna da sala me obriga a olhar com atenção não só para minha professora, mas para minhas companheiras para que eu possa aprender por meio de seus movimentos (o que constrói, junto desse olhar, uma admiração muito particular por cada uma delas – uma tem as escápulas muito bem colocadas, a outra que tem um pé super alongado, uma outra que, mesmo na barra, dança). Não há tempo de competir, ou invejar, porque todo o foco é: aprender. Eu reconheço que preciso desse outro para eu me melhorar. Ser a pior aluna da sala também me ensinou a escutar com mais atenção o que me está sendo pedido: pois o que está em jogo não é o que eu sei fazer, mas o que eu terei que executar. Além de um jogo de disciplina interessante, estabelece-se uma relação de confiança com aquele que demanda algo de ti. Ser a pior aluna da sala também me ensina que não se é boa, e às vezes nem mesmo decente, em tudo o que se faz – e que é necessário assumir aquilo em que se é ruim também, pois só assim se reconhece o que é necessário melhorar. E não existe outro caminho que não seja o da insistência quando se é a pior aluna da sala e ainda assim se quer realizar esse algo.
Há sonhos que nunca te encontram. Eu jamais serei bailarina do Bolshoi, e pode ser que eu nunca execute uma variação em um palco para muita gente na minha vida. Eu voltei para o ballet clássico adulta, com um corpo já cheio de histórias, e em cada aula eu movimento todas elas trancando meu abdômen, subindo na ponta dos pés e tentando, aula por aula, me equilibrar em mim. Com uma professora que exige, mesmo de quem não é lá muito genial, o mesmo rigor que ela exige para quem já é muito bom. Mesmo a pior aluna em sala de aula, nessas condições, também se descobre uma bailarina – uma possível, engajada e vindo-a-ser.
Texto: Paloma Durante – Bailarina do BalletAdultoKR® – Seu sonho levado a sério.
E eu, Karen Ribeiro, com muito gosto sou a professora citada com tanto carinho e admiração.
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